Carta É PILHA
Baralhinho do Momento, site antipropaganda, 2005
(você é novo no Baralhinho do Momento? comece por aqui)
Mensagem: É PILHA
Número: 9
Comentário:
A Carta É Pilha, pra ser franco, representa um grito de revolta contra o destino, esse doente.
“Não aceito! Você, destino do caralho, e que caralho, você só pode estar de sacanagem! Não acredito que isto está acontecendo comigo agora nesse instante!! É brincadeira de criança essa porra toda!”
A Carta É Pilha é isso. Tem um toque de chilique? Tem, mas é mais chique. E mais honesto. E mais sério. É uma carta que reúne, enquanto carta, todos os sentimentos mais nobres de revolta e indignação perante qualquer merda que aconteça. Esquema Kaká, que você lança a carta no chão, levanta os dedos pro céu, mas grita: É Pilha!
Sacou? O destino taí, já foi. Já largou no seu colo a granada sem pino, agora conta até um e BUM. É o morteiro de Natal dentro da sala – depois eu conto essa. Doze por um. BLAU. Queimou só o braço? Tá bom. O que resta? A Carta É PILHA.
Jogou, extravasou. E só.
Vai mudar alguma coisa jogar a Carta? Não. É um direito seu? É. Então exerce. Se não adoece. Pelo menos tu fez um movimento com a mão, aquela lançada raivosa que estala a carta no chão. PLÁ! Já é uma atitude. Já é uma porrada, um som.
A Carta É PILHA é o seu direito de resposta pro universo. E direito de resposta, você sabe, não adianta nada, nunca adianta, mas você quer responder de qualquer jeito. É o equivalente, dentro daquelas porradarias generalizadas, ao “vou te pegar, filha da puta!” que você só grita no final, já de dentro da ambulância, todo arrebentado. Você sabe que não vai pegar ninguém. No máximo, vai pegar seu dente de volta, que ficou na praça. Mas vingança mesmo é um prato que se você leva pra casa, esquece de comer e apodrece, ele fede e cresce. Daí, quando a oportunidade aparece, você deixa pra lá. Dá trabalho, dá azar. Acontece.
E o termo É PILHA não veio do nada, caiu uma pilha na minha garganta e eu engoli me achando ex-garoto de programa do gugu. Não é isso. Não é janta de quem tá passando fome de tudo. É pilha significa que alguém tá botando uma pilha, uma carga, uma descarga, uma eletricidade, um volt no seu medo de aquilo ser o que parece que é e você não quer que seja. Mas é! Você acha que é pilha que alguém tá botando num receio que já estava devagar quase parando, o coelho da concorrência, naquela propaganda 90. O problema é que não é pilha, é verdade. É ligação direta, é curto circuito, é corrente elétrica que dá choque, queima, mata e arrepia.
Mas o Baralhinho do Momento veio pra te dar pelo menos a colher de chá de responder ao destino na hora do lanche. É pouco, mas não é nada.
Agora cabe um comentário leve, sem pressão, apenas do ponto de vista da ressalvação: é importante saber distinguir a diferença entre as cartas NÃO METE ESSA, AÍ VOCÊ ME QUEBRA e a Carta É PILHA. São cartas diferentes.
Esta diferença entre as cartas é muito sutil e você, praticante do Baralhinho do Momento, tem que se acostumar com a sutileza do mundo, com a sutileza das coisas, com a sutileza dos momentos. Comida sem tempero, não é comida sem gosto. Comida sem tempero é comida sem gosto de tempero. É diferente. Comida sem tempero tem gosto. Qual gosto? O gosto da comida sem tempero. E que gosto é esse? AÍ VOCÊ ME QUEBRA, entendeu?
A Carta NÃO METE ESSA já é uma carta mais apropriada para um momento de revolta frontal direta a alguém, ou a alguma coisa metida por alguém. A pessoa mete uma, você remete, rerremetendo a Carta NÃO METE ESSA de volta, significando: essa não! Mete qualquer uma, menos essa. Sacou? Tem o Jedi, tem o retorno e tem o retorno de Jedi. Três músicas.
E pra reforçar, a Carta AÍ VOCÊ ME QUEBRA é pra ser lançada quando alguma coisa aconteceu quebrando sua expectativa e você não vai fazer nada, a não ser demonstrar, com a utilização do Baralhinho, toda a sua decepção, dissabor, dor, mágoa, sofrimento e tristeza com a atitude tomada contra você. Mas vai seguir adiante. Tu me quebrou, mas tudo bem.
Agora A Carta É PILHA é diferente. Ela até poderia sugerir do evento traumático ser apenas uma possibilidade de pegadinha com você de graça, mas ela não tem um ponto de interrogação no final. Não tem. Ela afirma! Sim. Mas ela tem certeza? Não. Provavelmente não é pilha? Sim. Então é verdade? Com certeza.
Viram como o momento é diferente? Isto que tem que ficar claro. O momento é de se indignar duvidando de algo que está acontecendo como um todo, mas que é real. E a carta é abrangente. Até pode ser que um indivíduo apenas só solitário sozinho seja o único responsável pelo extraordinário acontecimento que tá te estoporando por dentro e por fora, mas a carta é pro conjunto da obra. É pra lançar contra ele, mas também contra tudo e contra todos, contra o planeta, contra o cosmos, é pra lançar contra a existência. A Carta É PILHA você manda pra cima, pro alto. Porque o que está acontecendo é tão doido e tão inacreditavelmente inacreditável que só pode ser pilha do universo.
Por exemplo, você saiu de casa de camisa branca zero bala, atrasado, pega um taxi engarrafado, tempo ruim, chega em cima do laço, teu amor acena pra você e quando você estufa o peito para dar aquele primeiro passo e entrar no salão do Prêmio do Babaca do Ano que é seu e de mais ninguém, você toma uma bomba manchada borrada de pombo graúdo, trabalhado no creme cinza mesclado, espuma, escorrendo pelo ombro, peito e parte do abdômen, criando a faixa preta na blusa branca. Ponte Preta, Vasco, cinto de segurança. Um a zero, pombo.
- É pilha!
Entendeu? Não tem o que fazer. Não tem lenço, não tem tempo. Não dá. Acabou. Tchau. Perdeu a blusa, perdeu o amor, perdeu o prêmio. Valeu.
Sacou a revolta? A Carta É PILHA quando é lançada forte num momento como esse, vai abrir o portal da violência pra você extravasar. Deixa fluir. E ela é jogada pra situação como um todo. Para todo o evento. A Carta NÃO METE ESSA teria um uso menor, se você lançasse ela pro pombo, por exemplo. E nem seria muito proveitoso, porque pombo caga pra isso. Pombo caga pra tudo. Ainda tem essa.
A Carta É PILHA não resolve a blusa, mas libera a raiva. Entenderam?
Gente, cozinhar não é difícil, kung fu não é difícil, escrever em ônibus não é difícil, bater corner não é difícil, tocar oboé não é difícil, levantar copo de vidro com o poder da mente não é difícil. É treino.
Baralhinho do Momento não é difícil, é treino.
Exemplo Ilustrativo de Uso:
Você chega da boate cansado das luzes estroboscópicas, do som alto, das pessoas bonitas, dos tocos feios e das danças corretas. Nada o ajudou em nada e mais uma vez sozinho às 4:15 da manhã você está.
Seus amigos seguem pra casa, você segue pra sua, entra no prédio, cumprimenta a portaria, entra no elevador social, aperta o cinco, percebe que o elevador social está desligado, sai do elevador social, entra no elevador de serviço, aperta o 5 e sobe junto com o conjunto de aço. Badúúúúúúúú....
O elevador chega, a cortina abre, o palco da mediocridade se apresenta pra você, no caso, o corredor do seu andar e teu triunfo te espera na cama vazia, porém com aquela coberta que a sua avó fez e um travesseiro que você não abandona há 30 anos. Vai ser demais. Solidão, pra quem é íntimo, tem seus segredos pra fazer carinho.
Mas quando você sai no corredor e pisa no chão, você sente mais do que chão, você sente água. Olha pra baixo, pisa de novo, splot, splot, é água mesmo, maluco! Que porra é essa?! Você pergunta e xinga em pensamento, enquanto caminha pro seu apartamento, você percebe que a água o persegue. E ao dobrar a mini-esquina do corredor, realiza, na surpresa da tristeza, que a água que desce e desce forte vem da sua casa! Está saindo do seu apartamento!
Carta É PILHA! Já! E mantém na mão que vem mais!
Você já adrenaliza, busca a chave, abre a porta e a água acumulada lambe a sua canela, esvaziando a cozinha e enchendo o corredor. Parece uma piscina Tone que rasgou na tua casa. Mas não é isso e você sabe que não é isso, porque você não tem uma piscina Tone, a alegria da garotada, em casa. E a realidade do momento não é de alegria. Nem de garotada. O momento é água. E muita.
E há dois tipos de problema neste mundo: o problema tipo meu e o problema tipo seu. E esse é um problema tipo seu! (citação de empresa babaca de trabalho merda executivozinho).
Mas sendo um problema tipo seu, você vai seguindo o fluxo, como aquelas expedições do Globo Repórter, em busca da nascente do rio 503 bloco 2. Passa por você um saco de bisnaguinha seven boys flutuando e você realiza que a situação é dramática. Você alcança a área de serviço se agarrando nas coisas e encontra a nascente.
E a nascente é seu pai! De cuecas, bêbado, tentando com o dedo indicador conter, quase que moralmente, porque não está fazendo a mínima diferença, uma enxurrada de água violenta que brota da parede sem parar, no lugar que até hoje de manhã era o tanque de lavar roupa.
Carta É PILHA pro papai!
E, amigo, a água que brota da parede, brota num volume, numa potência, que faz a caixa d’água do prédio borbulhar que nem filtro de galão. Bablug, Bablug, Bablug!!!
Carta É PILHA pro barulho. É sério.
Teu pai de dentro do chafariz em que se transformou a sua área de serviço, te reconhece e dá a notícia que você já sabe.
- Filhinho... deu merda.
Porra, claro que deu merda, papai!
- Filhinho... deu merda. Bota o dedo aqui, que teu pai vai resolver. Segura essa peteca.
Teu pai tira o dedo do buraco e sai um jato tão forte que teu pai desliza pra trás, mete a nuca no tanque no chão. E mete a nuca forte! Você ajuda, os dois caem, é água pra cacete, teu pai levanta, você cai, teu pai cai, você levanta e a área de serviço vira briga de palhaço. Meia hora de bobeira, abrindo espaguete e bebendo água e você e teu pai conseguem levantar juntos, ao mesmo tempo, se apoiando, tossindo, tremendo, cuspindo água e teu pai sai saindo, meio patinando, meio não entendendo porra nenhuma do que está acontecendo.
E você volta pro buraco, mete o dedo, tentando fazer o melhor, mas é impossível. Água é água e ela escapa por tudo quanto é lada. E você que estava cansado, pensando só na sua cama, agora está de pé matando uma cascata nos peitos, revezando de dedo no buraco, temperatura baixando dramaticamente e contando o tempo passar pelos litros de água que se perdem na loucura daquele instante. Inacreditável.
Carta É PILHA alcalina, filhadaputa!
Depois de duas horas, com o dedo indicador azul, o médio paralisado, a cara enrugada, a camisa transparente e o pulmão assoviando, você se pergunta: cadê papai?!
Na busca pela verdade, você abandona o posto, o jato sai que nem o exorcista do filme do exorcista, a caixa d’água lá cima babluga de novo e você mete pela cozinha. É água. Você invade a sala, é água. Rompe pelo corredor, é água. Passa pelo banheiro, é sua mãe sentada não entendendo nada. Fumando. Oi, filho. Você nem responde, passa pelo escritório, é água. E quando você abre a porta do quarto do seu pai, vem o choque, o verdadeiro choque térmico:
Teu pai está deitado na cama dormindo. Só isso. Dormindo de roncar! Foda-se. Encharcado. Dormindo. Foda-se.
Um grito ecoa forte, muito forte pelo edifício Eugênio de Alencar:
É a Carta NÃO METE ESSA saindo direto das entranhas mais profundas do seu édipo de ódio! (sentiram a sutil diferença de utilização das cartas? Teu pai sentiu)
As luzes dos apartamentos se acendem, as pessoas aparecem nas janelas, o teu pai levanta só a cabeça e no silêncio depois da corneta, todos ouvem juntos, intrigados, um som mais do que misterioso:
BABLUG!
Era o último gotão de mil litros que acabara de escorrer pelos tubos e conexões onça do teu prédio, não é tigre, fazendo a cascata do teu apartamento secar e a conta de água do seu apartamento explodir igual um gêiser de dinheiro, só que ao contrário, escoando pra dentro do buraco, fora a multa do condomínio que você teve que assumir, porque teu pai cismou de desaparecer geral. Sumiu. Mesmo. Saiu pra pegar uma toalha e nunca mais voltou. Sua mãe, fumando.
Teu pai apareceu dois anos depois. Molhado.


Não acredito que ri tanto do som de uma caixa d'água esvaziando.
Minha favorita 🤣